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6.2.23

Quem foi Calígula

A Itália busca o barco das orgias de Calígula 

Esses barcos foram o protótipo da festa: sexo, álcool e horário ilimitado. São a 'caixa preta' de umas da etapas mais turbulentas do império.
A busca do terceiro navio de Calígula reaviva a fascinação que os governantes mais cruéis e extravagantes continuam despertando.

A lenda ganha corpo científico e em Nemi as pessoas esfregam as mãos. 
A pequena localidade, 33 quilômetros a sudeste de Roma, rastreia o fundo de seu lago em busca do terceiro grande navio de Calígula

Duas daquelas vilas flutuantes, que o imperador mandou construir multiplicando sua fama de exagerado, foram recuperadas por Mussolini, entre 1928 e 1932, expostas em um museu junto ao lago e queimadas na noite de 31 de maio de 1944 na fuga alemã ante o avanço aliado sobre Roma.
 
Agora, a possibilidade de encontrar um terceiro, como já indicavam documentos do século XV, devolve vigor ao fascínio por um imperador que governou durante quatro anos que as crônicas transformaram em 1.400 dias de terror.
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Nemi e seus navios foram o protótipo romano de festa flutuante de verão: sexo, álcool e horário ilimitado. 
Mas, para além da hipérbole e dos relatos da micro-história que confirmam nossa predileção pelas narrativas sobre os governantes canalhas, o que se preservou 2000 anos sob a água doce do lago foi também a caixa preta de uma das etapas mais turbulentas do império. 

De modo que, depois de quatro séculos de imersões estéreis para recuperá-las, Mussolini contratou uma empresa milanesa que esvaziou o lago com uma prodigiosa bomba hidráulica. 
Cerca de 40 milhões de metros cúbicos de água foram canalizadas para o mar através de velhos aquedutos romanos e, debaixo do lodo, pouco a pouco, apareceram os dois barcos: o primeiro media 71 metros e o segundo, 75. 

Palácios flutuantes com aposentos de mármore, esculturas e avanços tecnológicos como encanamento de chumbo para que a água quente regasse as farras. 
Um símbolo dos excessos que regeram a vida de Calígula.

Mas os mesmos excessos, de algum modo, o conduziram à morte. Em 24 de janeiro do ano 41 decidiu tomar um banho para aliviar uma ressaca incômoda.
 
Os arrebatamentos paranoicos não o impediram naquele dia de adentrar um beco do palácio em Roma, onde foi esfaqueado por um grupo de centuriões que agiram como mensageiros. 
Tinha 28 anos e só havia governado quatro quando o mandaram para o outro mundo.
 
Seu curto mandato, como também sucedeu com Nero, por outras razões, se transformou na imagem da corrupção e da perversão do poder absoluto em Roma.
O inquietante relato oficial de Calígula – na verdade, Cayo Julio César Augusto Germânico— fala de um homem que ameaçou nomear seu cavalo cônsul, que prostituía as irmãs, abusava de seu poder sistematicamente e violava as esposas de seus súditos como passatempo. 

No entanto, a representação feita dele tem a ver também com o álibi moral edificado por seus autores para tirá-lo do caminho, como argumenta a historiadora e prêmio Princesa de Astúrias 2016 Mary Beard: “Grande parte da história foi exagerada ou inventada depois de sua morte para justificar o assassinato. 
Isso não significa que pensem  que Calígula foi um bom imperador, na verdade, agora é quase impossível diferenciar os fatos da ficção. Mas estar bastante seguro de que não era exatamente como o pintam”.

Esses barcos foram o protótipo da festa: sexo, álcool e horário ilimitado. São a 'caixa preta' de umas da etapas mais turbulentas do império

Mas a verdadeira gênese do mal talvez tivesse a ver, no caso de Calígula, com os problemas sucessórios e a falta de uma lógica clara que ordenasse esse processo sem conspirações nem violência. 

Nos primeiros 100 anos do império, como recorda Beard, a morte dos imperadores esteve rodeada desse tipo de mecanismo e suspeita. 

Seu assassinato poderia ser atribuído a grupos de poder que não queriam que Roma fosse por mais tempo uma autocracia dinástica. 
A resistência de certo establishment acentuou essa sensação de encurralamento e sua obsessão pela segurança. 
Mas que alguém seja paranoico não quer dizer que não esteja sendo perseguido.

Retrato do imperador Calígula.  GETTY

Calígula, o Deus

Em 40, Calígula desenvolveu uma série de políticas muito controvertidas que fizeram da religião um importante elemento do seu papel político. 
O imperador começou a realizar as suas aparições públicas vestido de deus e semideus, como Hércules, Mercúrio, Vênus e Apolo.
 
Referia a si mesmo como um deus quando comparecia ante os senadores, e ocasionalmente aparecia nos documentos públicos com o nome de Júpiter. 
Erigiu três templos dedicados a si mesmo; dois em Roma e um em Mileto, na província da Ásia. 
No Fórum, o Templo de Castor e Pólux foi vinculado diretamente à residência imperial no Palatino e dedicado a Calígula.
 
Foi a esta época que começou a aparecer como um deus em frente da plebe.
A política religiosa de Calígula rompia totalmente com a dos seus predecessores. 
Segundo Dião Cássio, os imperadores vivos podiam ser adorados no Oriente, enquanto os imperadores mortos o podiam ser em Roma. 

O Adorado pervertido

Augusto até mesmo escreveu uma obra a respeito do seu espírito, embora Dião considere este ato como uma medida extrema que os imperadores preferiam esquivar. Calígula foi muito mais além ao obrigar o senado e o povo a render-lhe culto em vida.

Segundo determinados historiadores, nos seus últimos anos de vida, Calígula esteve envolvido numa série de escândalos, entre os quais se destacam manter relações incestuosas com as suas irmãs; e até mesmo obrigá-las a prostituir-se.
 
A 24 de janeiro de 41, foi assassinado pelos executores de uma conspiração integrada por pretorianos e senadores; e liderados pelo seu prefeito do pretório, Cássio Quereia.

Existem poucas fontes sobreviventes que descrevam o seu reinado, nenhuma das quais se refere a este de maneira favorável. Pelo contrário, as fontes centram-se na sua crueldade, extravagância e perversidade sexual, apresentando-o como um tirano demente.

Para além do mito, Calígula é hoje uma oportunidade comercial para Nemi. 
Um lugar de apenas 2.000 habitantes que atraiu artistas como Goethe, Byron, Stendhal e Turner e que, talvez, se conformaria hoje com a fama de seus deliciosos morangos da floresta.
 
Por ora, o destrutível magnetismo do imperador permanece nos ímãs com seu rosto e nos souvenirs da loja de Santino Lenzi, um artesão que penteia seus cabelos brancos como um autêntico romano, à espera de notícias. As primeiras informações das sondas deixam entrever mais desejos que indícios. 







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